9 de setembro de 2013

No inferno [03]

03.

Mais um dia no Hades. Despertou, vestiu-se, foi engolido pela luz e piscou tonto e confuso já no quarto cinza. Saiu correndo porta afora enquanto os flashes de memória fragmentada ainda pipocavam em sua mente. E correu, tropeçou, caiu, levantou e seguiu correndo e tropeçando misturando realidade com a memória que piscava luminosa diante de seus olhos. Ora corria no cinza escuro e solitário do poente, ora nas luzes e cores fortes das lembranças e assim seguiu correndo até chocar-se violentamente contra uma parede e desabar confuso no chão gelado. Só então percebeu que chovia e fazia muito frio. Permaneceu sentado na chuva, sorvendo com calma o sangue que lhe escorria pelo nariz enquanto analisava o lugar onde estava, tentando descobrir de onde saiu e para onde poderia ir. Era um loteamento sofisticado com casas grandes, imponentes, mas muito próximas umas das outras. Não havia jardins. As casas eram alinhadas à calçada e seguiam emparelhadas, idênticas, por uma rua infinita cortada por transversais a cada cem metros. Um último suspiro de luz ainda mantinha-se no horizonte à sua esquerda. Olhou para o lado oposto e notou a escuridão engolindo tudo, parecendo derramar-se na sua direção. Não havia iluminação nenhuma na rua nem das casas. À sua frente, do outro lado da rua, a porta aberta da casa de onde saiu correndo; sua residência no inferno. Não ouviu som nenhum que não fosse da chuva, nem viu nenhum movimento que pudesse indicar a presença de mais alguém naquele loteamento fantasma. Decidiu ficar ali mesmo, deixar-se engolir pelo breu da noite, e ver o que aconteceria.

A chuva e o frio devem ter ajudado a manter Zé Augusto acordado. A escuridão engoliu o inferno todo, mas aos poucos foi se acostumando com ela. Quase pode sentir a pupila dilatar-se até que tudo ao seu redor tornou-se novamente visível. Era cinza-escuro, mas podia perceber nitidamente as formas e contornos. Sentiu-se animado, vivo, forte e ágil. A chuva já havia limpado o sangue do nariz, que parara de escorrer. Levantou-se e correu pelo meio da rua escura a toda velocidade. Sentia falta de cansar-se. Correu por horas até não aguentar mais. Não viu ninguém nem ouviu som algum. Era só a repetição de casas e quadras idênticas por quilômetros e quilômetros. Sentou-se ofegante no chão molhado para descansar um pouco, e pegou no sono.



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Continua...

Acompanhe a série:
No inferno | 01
No inferno | 02
No inferno | 03
No inferno | 04

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