12 de setembro de 2013

No inferno [04]


04.

Mais uma manhã brilhante no mesmo quarto de sempre. Vestiu-se e foi tragado pela luz. Acordou e correu para fora de casa, mas desta vez somente dois ou três flashes de memória muito rápidos fustigaram sua mente. Antes mesmo de sair da casa já estava plenamente consciente e assim que alcançou a rua, virou à direita e seguiu correndo no sentido do poente. Não chovia e sentia-se agora muito mais vivo e consciente que na noite anterior. Dessa vez virou em várias esquinas na esperança de encontrar algo diferente. Correu feito louco, olhando para todos os lados, buscando um movimento, uma cor, alguma coisa fora do padrão, mas só viu as mesmas casas de sempre. Sentou-se cansado em uma esquina qualquer.

"Que merda, Zé", falou consigo. "Vai fazer o quê nesse inferno lascado?". Estava sentado no meio fio, com os braços apoiados nos joelhos e as mãos soltas, caídas à frente. Olhava para o céu escuro e pensava no horror de uma eternidade assim. "Seria mesmo eterno o inferno?", pensou. "Deus queira que não", respondeu para si mesmo, baixinho. Vontade de chorar e ranger os dentes não faltava, mas não quis fazê-lo só de birra. "Isso não. Se depender de mim não vai ter nem um nem outro". Enquanto resmungava, as lembranças dos dias agitados lhe voltaram à mente, mas agora de forma controlada, como costumavam ser as lembranças antes do inferno. Tentou encontrar lá algo que lhe ajudasse a pensar em uma possibilidade de fuga ou coisa parecida. Fechou os olhos, levou a mão direita à testa e foi vasculhando a memória como podia. Via os ambientes, tentava procurar por algum detalhe, evocar aromas, tentar ouviras conversas, os assuntos. Lembrou de um escritório, viu contratos sendo assinados, apertos de mão confiantes e comemorações eufóricas. Havia mulheres. Detalhes de corpos, de decotes, de pernas e seios nus. Até que percebeu, enfim, um detalhe que até então lhe escapara. Nas maioria das lembranças de festas, viagens e ambientes públicos, no meio da multidão sem nome que lhe cercava sempre entre risos e piadas, havia um rosto que se repetia. Sempre nos cantos, nas beiradas, discreto, atento, observando em silencio. E não sorria. Parecia estar em vários dos locais dos quais Zé recordava. Sempre com um olhar diferente de todo resto e, em muitas situações, olhando diretamente nos seus olhos. Parecia estar armando algo, tramando alguma sacanagem, talvez para não lhe deixar mais nem lembranças coloridas. Para mergulhá-lo de uma vez por todas no quarto cinza e fedorento dos fins de tarde. "Quem é?", pensou Zé. "O miserável não tira os olhos de mim". E levantou-se indignado, inconformado, e começou a berrar o mais alto que podia: "Vem, seu filho de uma égua! Tô aqui. Porque não aparece agora? Vem que eu te arrebento seu merda!" E berrou e berrou e não pode controlar o choro. E quando chorou ficou puto porque não queria chorar. E resmungou baixo, praguejando entre lágrimas até ouvir de longe, muito longe um outro grito: "Zé? Tá aqui aonde?". "Caraca, será?" pensou, apavorado. Ergueu a cabeça e voltou a berrar. "Tô aqui porra! Sei lá. É tudo igual nesse inferno." E procurava em vão algum ponto de referência que pudesse indicar onde estava. E lá longe, muito baixo, "Continua berrando, Zé. Eu te acho!" E foi aquele berra de cá, berra de lá, mais perto e mais longe, feito brincadeira de criança, mas com o Zé apavorado. A simples hipótese de ver alguém de verdade o levava a um estado de euforia vertiginoso. Não importava mais quem era e o que queria. Berrava e pulava e corria de um lado para o outro. Desesperava-se quando a voz se distanciava: "Não! Não! Tá indo pra longe. Volta, pô. É pra cá. Tô aqui!". E berrou a noite toda até perder a voz. Até cair no sono.



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Continua...

Acompanhe a série:
No inferno | 01
No inferno | 02
No inferno | 03
No inferno | 04
No inferno | 05

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