26 de setembro de 2013

No inferno [08]

08.

Já era noite e aquele lugar resfriava até os ossos. Os vapores condensados saíam quentes pela boca acompanhando as palavras e a respiração. Pelas paredes escorriam gotas de água que deixavam o quarto ainda mais gelado. Zé Augusto sentou-se na cama desarrumada, Abud puxou o banco para perto e sentou-se também.

"Se aquilo é o inferno, Abud, você estava fazendo o que lá? Eu via você sempre por ali, me olhando de rabo de olho. Como é que você estava lá? Como é que veio parar aqui?"

"Esse é o meu trabalho Zé. Entrar no inferno pra tentar tirar alguém de lá. Nós saímos procurando, vagando, olhando nos olhos da rapaziada, vendo se encontramos alguém variando, alguém que mesmo estando lá, mete de vez em quando o nariz para fora. Alguém que com os olhos pede socorro, mesmo que não saiba ainda de quê quer ser salvo. Quando encontramos alguém, a gente cola no cara, segue ele, vai tentando descobrir onde ele está quando sai fora, quando ainda tem algum momento de lucidez no meio daquela confusão toda."

"E o momento de lucidez é isso aqui? Eu tô nessa merda? Isso é melhor que aquilo?"

"O seu momento de lucidez é esse aqui. Mas não é o mesmo pra todo mundo. Mesmo o inferno, cada um tem o seu. Eu já tive o meu, Zé, e me tiraram de lá. E não tinha nada a ver com o seu. Meu inferno era um templo. Uma igreja enorme. Tinha cruz, bíblica, pregação, evangelismo, batismo, tudo que você pode imaginar."

"No inferno?"

"No meu sim. Eu vivia aquele negócio todo entusiasticamente. Fiz uma bela carreira lá dentro. Tornei-me bispo, liderava multidões, cativava todo mundo com um discurso poderoso. Consegui um programa de TV, publiquei montes de livros. Falava de Jesus o tempo todo, de Deus, de amor. Era um discurso belíssimo. Mas era tudo voltado para meu próprio umbigo. Uma corrida para o sucesso ministerial. Abria a bíblica seletivamente, montava minhas mensagens com recortes de textos salpicados de todo canto. O discurso estava pronto, era só pesquisar textos compatíveis com o discurso, que era sempre de poder, de sucesso, de glória, de vitória."

"Estranho isso."

"No fundo, Zé, os infernos são sempre os mesmos. A aparência exterior é que muda. O meu inferno não era tão diferente do seu. Só mudava o cenário. É sempre assim. O cenário muda, mas é a mesma essência. É uma correria para si mesmo. E é tão si mesmo que, via de regra, é um lugar de absoluta solidão. Você lembra de alguém lá? Pode citar alguém pelo nome?"

"Rapaz, é tanta gente. Já tentei lembrar de nomes, mas não consigo."

"Multidão e ninguém são a mesma coisa."

"Mas ninguém por ninguém, aqui também estou sozinho."

"Estava, Zé. Agora você tem Abud" e uma gargalhada ecoou no quarto escuro.

"É. Já é alguma coisa. Mas, sinceramente, não sei se posso trocar aquilo tudo por isso daqui. O negócio lá parecia ir muito bem. Acho que eu estava crescendo e mais cedo ou mais tarde alguém acaba aparecendo, se aproximando, tonando-se amigo."

"Será? Até agora, a única coisa que você tem são flashes confusos na memória."

"Flashes confusos mas empolgantes. Com grandes perspectivas. Com futuro promissor. Tenho certeza que se eu vivesse aqueles momentos de fato, se estivesse consciente quando o dia claro está acontecendo, conseguiria fazer contatos, amigos, sei lá. E não precisaria abrir mão daquele luxo todo."

"Você já fez isso, Zé. Já viveu aquilo tudo consciente. Foi justamente aquela consciência que o tirou de lá, que o trouxe ao quarto escuro do poente. Você parou aqui porque já não suportava aquilo, porque sua consciência o trouxe para fora." Essa frase pareceu fazer sentido para Zé Augusto. Num instante sentiu de fato já ter vivido aquilo e soube que estava cansado, que já não suportava. Mas no instante seguinte creu estar delirando e aferrou-se novamente à ideia de que precisava voltar e viver aquela vida intensamente. E que seria bom. Seria maravilhoso.

"Não posso fazer nada por você além de estar por aqui, Zé. Voltar lá é fácil. O problema é que acaba chegando um momento em que você será engolido por aquela euforia e não cairá mais em si no poente. O dia vai virar e você ficará por lá. E não sei se encontro você de novo. Você pode tomar novos rumos, novos caminhos e tornar-se inacessível. É um risco alto."

"Eu vou de novo, Abud. Preciso ir. Esse quarto cinza me dá arrepios" e, enquanto falava, bocejou, ajeitou-se na cama, e dormiu.



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Continua...

Acompanhe a série:
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