30 de setembro de 2013

No inferno [09]


09.

A luz foi menos intensa naquela manhã. Zé Augusto tinha a sua frente não um único banco e uma única muda de roupa, mas um quarto espaçoso e um guarda-roupas razoavelmente grande. Estava confuso e tonto. Sentia como se tivesse despertado de um longo sono, depois de uma noite de muita bebida. Uma ressaca daquelas. Saiu do quarto cambaleando. Encontrava-se no andar superior de uma ampla sala de estar. Desceu as escadas segurando firme no corrimão e foi à cozinha preparar um café. Sentia-se em casa. A geladeira estava cheia. Serviu-se de algumas frutas, duas fatias de pão e café instantâneo com leite. Com a barriga cheia já se sentia muito melhor. Tomou uma ducha fria, vestiu-se com a primeira roupa que encontrou no armário, pegou a pasta que estava sobre a mesa da cozinha e foi até a garagem. No para-brisa do carro descansava um bilhete adornado com três corações mal desenhados à caneta: "A noite foi ótima - me liga". Não conseguia lembrar de nada sobre aquela noite, nem imaginar quem teria deixado o bilhete, mas sorriu discretamente e entrou no carro. Sabia que tinha assuntos urgentes à resolver. Tentava lembrar-se do conteúdo dos contratos pendentes, das reuniões anteriores, dos acertos com os moradores, do acordo com o governo do estado que comprometeu-se a garantir a remoção das famílias. Sabia que precisava ter tudo pronto, engatilhado, para iniciar a demolição e as obras antes que houvesse tempo de um recurso por parte de algum dos desalojados. Quando a porta da garagem abriu e a luz do sol lhe feriu os olhos, foi imediatamente fulminado com flashes de memória confusa. Via um quarto cinza, um loteamento fantasma de casas iguais, garoa, frio e um homem gritando seu nome pelas ruas. As imagens iam e vinham enquanto Zé conduzia o carro para a saída do condomínio onde morava. Acenou para o guarda na recepção e seguiu na direção de seu escritório. Vivia em um bairro nobre de uma grande capital. Fazia esse caminho todos os dias, inclusive finais de semana. Lembrava-se dos detalhes do percurso, das curvas, das praças, dos viadutos, dos restaurantes que frequentava. Passou em frente ao L'Ambroisie e lembrou-se imediatamente da noite anterior com Isabela. Olhou furtivamente para o bilhete que jazia sobre o banco do passageiro, sorriu, mas era difícil concentrar-se no que quer que fosse por causa das imagens estranhas que lhe vinham à mente como fotografias velhas em preto-e-branco. Foi desperto do instante de confusão pelo susto do solavanco e do som seco e grave que resultaram do impacto em seu para-choques. Freou o carro a tempo de ver o corpo que rolava sobre seu capô esparramar-se no chão ao seu lado. A rua estava vazia. Desceu do carro e tentou cuidadosamente analisar a situação do homem. Sem que fosse preciso tocá-lo, ele virou-se lentamente, gemendo e sujo do sangue que escorria da testa e das mãos. Olhou nos olhos de Zé Augusto com o rosto franzido de dor, e riu.

"Eu esperava encontrar-lhe aqui Zé. Só não achei que fosse tão rápido nem tão dolorido", falou mostrando os dentes brancos machados de sangue.



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Continua...

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